terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Para jurista, STF deve decretar perda do mandato de deputados condenados no mensalão



Por Luiz Flávio Gomes

A polêmica da perda do mandato se instaurou, sobretudo na mídia, não por falta de regras, sim, por excesso delas. Mas se trata apenas de um conflito aparente de normas, solucionável pelo critério hermenêutico da regra-exceção. Já veremos. Antes, uma observação: a avaliação imparcial de todos os aspectos jurídicos do julgamento do mensalão exige que fiquemos longe do brilho da estrela vermelha do PT assim como distante dos grunhidos do bico azul/amarelo do tucano. Pensando no valor justiça, sejamos imparciais — ao menos do ponto de vista partidário — nas nossas valorações jurídicas.

O Supremo Tribunal Federal (data máxima vênia) errou ao não reconhecer o duplo grau de jurisdição a todos os réus, violando a decisão Barreto Leiva da Corte Interamericana. Vai, no entanto, acertar — e acertar com precisão —, se declarar a perda do mandato de todos os parlamentares condenados no caso mensalão (três no total: João Paulo Cunha, Valdemar Costa Neto e Pedro Henry), nos termos do artigo 92, I, do Código Penal. O mandato se extingue logo após o trânsito em julgado da decisão, sem necessidade de qualquer decisão da Câmara dos Deputados. Por quê?

A chave de compreensão do texto constitucional (artigo 55, VI), que defere à Casa Legislativa o poder de decidir sobre a perda ou não do mandato do parlamentar, está no artigo 92, I, do Código Penal, que prevê essa perda em dois casos muito graves:

“Artigo 92 — São também efeitos da condenação:

I. a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:

a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;

b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos nos demais casos.”

Nesses dois casos — sumamente reprováveis, do ponto de vista da ética e da moralidade pública —, apesar do entendimento provisoriamente externado na Ação Penal 481, por se tratar de efeito secundário da sentença condenatória, quem deve decretar a perda do mandato é o próprio STF e essa sua decisão tem consonância com o artigo 15, III, da Constituição Federal, que prevê a suspensão dos direitos políticos de quem é condenado criminalmente em sentença definitiva. Como desdobramento natural, diz o artigo 55, IV, que, nesse caso, a Casa Legislativa apenas declara a perda do mandato, não tendo nada que decidir (visto que a decisão aqui é judicial, ou seja, exógena).

A ordem normativa, portanto, da perda exógena do mandato parlamentar, é esta: 92, I, do Código Penal, artigo 15, III, da Constituição Federal e artigo 55, IV, da Constituição. Essa é a regra geral que comanda o assunto.

Essa regra geral encontra uma exceção. Quando o STF condena o parlamentar sem estarem presentes os requisitos do artigo 92, I, do Código Penal — por exemplo: quando o condena a pena alternativa ou substitutiva —, a decisão de decretar ou não a perda do mandato é endógena, ou seja, exclusiva da Casa Legislativa (Constituição Federal, artigo 55, VI), que constitui exceção à regra geral dos artigos 15, III e 55, IV, da Constituição Federal.

A diferença entre o artigo 55, IV e o artigo 55, VI, da Constituição é que a perda do mandato com base no inciso IV é exógena e automática — não requer nenhuma decisão da Casa Legislativa. Já a perda do mandato do inciso VI é endógena e exige decisão do Parlamento. O inciso VI constitui exceção frente ao inciso IV — que é a regra, desde que presentes os requisitos legais do artigo 92, I, do Código Penal.

A história desta exceção é a seguinte: durante os trabalhos constituintes discutiu-se se um parlamentar perderia ou não o mandato quando condenado, por exemplo, por um acidente de trânsito culposo. Nesse caso, normalmente, incide pena substitutiva. Logo, não se aplica o artigo 92, I, do Código Penal. Mas teriam aplicação (em tese) o artigo 15, III, da Constituição, combinado com o artigo. 55, IV. Seria injusta a perda automática (e exógena) do mandato nessa situação.

Para evitar a injustiça — de se admitir a perda do mandato em todos os casos e em todas as situações — temos então o seguinte: por força do inciso VI do artigo 55, da Constituição Federal, quando não incide o artigo 92, I, do Código Penal, cabe à Casa Legislativa decretar (endogenamente) ou não a perda do mandato em decisão secreta, por maioria absoluta. Mas isso só é possível — repita-se — quando não incide o artigo 92, I, citado. E este caso excepcional de perda endógena do mandato constitui exceção à incidência automática do artigo 15, III, combinado com o artigo 55, IV, da Constituição.

Há uma regra exógena (norteada pelo artigo 92, I, combinado com os artigos 15, III e 55, IV) e uma exceção endógena (artigo 55, VI, é exceção aos artigos 15, III e 55, IV) . Essa parece ser a única forma interpretativa que confere valor a todos os textos envolvidos na polêmica. O disposto no artigo 55, VI, não pode ser letra morta. A regra — decretação exógena do mandato — é resultado do artigo 92, I, do Código Penal, combinado com os artigos 15, III e 55, IV da Constituição. A exceção (decretação endógena do mandato) é o artigo 55, VI, que excepciona a incidência automática dos artigos 15, III e 55, IV, da Constituição, sempre que ausentes os requisitos do artigo 92, I, do Código Penal.

O conflito aparente de normas, neste caso, resolve-se pela racionalidade exegética da regra-exceção. De outro lado, não se está interpretando a Constituição (artigo 55, VI) conforme a lei ordinária. Não. Estamos buscando a conciliação entre três dispositivos constitucionais: artigo 55, VI, artigo 55, IV e artigo 15, III, que dão vida para a previsão normativa do artigo 92, I, do Código Penal — que, portanto, não é inconstitucional.

Essa nos parece a interpretação correta dos textos (só) aparentemente conflitivos. É a interpretação, de outro lado, que respeita não só o conteúdo das normas envolvidas (artigo 92, 1, do Código Penal, e artigos 15, III, 55, IV e 55, VI, da Constituição Federal), senão também todos os poderes constituídos. Porque será uma grave ofensa ao STF se ele declarar a perda do mandato (nos termos do artigo 92, I, do Código Penal) e a Câmara dos Deputados não acatar (desautorizar) essa decisão. Ficaria uma decisão judicial sob o crivo do Poder Legislativo. Nada mais disruptivo e assistemático. Decisão de juiz se cumpre depois da coisa julgada, quando então não cabe mais nenhum recurso.

Os poderes são independentes e é fundamental que se respeite essa independência, mas devem ser harmônicos. Daí a necessidade de se delimitar com precisão quando o STF decreta a perda do mandato do parlamentar (decretação exógena) e quando essa tarefa é da própria Casa Legislativa (decretação endógena).

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