O cansaço extremo fez André, de 24 anos, adiar o sonho de cursar uma faculdade. Ele é apenas um entre tantos jovens brasileiros que enfrentam a escala 6×1. “É escolher trabalhar ou estudar, porque muitos não podem ficar só estudando já que precisam de dinheiro para ajudar em casa”, desabafa. A jornada, que exige seis dias de trabalho consecutivos para apenas um de descanso, entrou no centro do debate público após a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentar uma proposta de emenda à Constituição para extinguir esse sistema.
Recentemente, esse regime passou a ser criticado amplamente na sociedade, tanto nas redes sociais quanto em manifestações nas ruas pelo país. Isso aconteceu após a discussão sobre a PEC, que busca substituir o modelo atual por uma semana de trabalho com até 36 horas, distribuídas em quatro dias. A proposta mantém o limite diário de oito horas e garante que não haja redução de salários.
A medida foi motivada pelo Movimento VAT (Vida Além do Trabalho), que questiona os impactos da jornada 6×1. Criado em setembro de 2023 por Rick Azevedo, ex-balconista de farmácia, o movimento nasceu após Rick desabafar em suas redes sociais sobre as condições precárias de trabalho que enfrentava. O vídeo viralizou e impulsionou a criação de grupos do VAT em todos os estados do Brasil. Em 2024, Rick se candidatou a vereador pelo PSOL no Rio de Janeiro e foi eleito com 29,3 mil votos.
A PEC já alcançou as assinaturas mínimas necessárias para ser apresentada na Câmara dos Deputados, mas Erika Hilton ainda avalia quando registrar formalmente a proposta porque, para avançar ao plenário, ela precisa passar pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Casa, presidida pela bolsonarista Caroline De Toni (PL-SC). Embora tenha ganhado força com o apoio de movimentos sociais, o avanço da PEC enfrenta desafios políticos. Entre os 18 deputados federais do Maranhão, por exemplo, apenas sete assinaram a proposta, o que reflete a falta de consenso até mesmo entre parlamentares de um mesmo estado.
Nesse sentido, a deputada está empenhada em primeiro ampliar o diálogo e conquistar mais apoio político antes de avançar com o texto. A estratégia inclui buscar consenso com líderes partidários e membros do governo para fortalecer a pauta e aumentar as chances de aprovação. A ideia é garantir que, ao ser apresentada, a PEC tenha suporte suficiente para tramitar nas comissões e no plenário, minimizando resistências.
Nas redes sociais de Hilton e do Movimento VAT, foi anunciada a realização de audiências públicas sobre a PEC pelo fim da escala 6×1, nesta terça (3) e quarta-feira (4), na Câmara dos Deputados.
“Mais um passo da nossa mobilização pelo fim da escala 6×1 e por jornadas de trabalho mais humanas”, escreveu a deputada no X (antigo Twitter).
Como a escala 6×1 afeta os trabalhadores: relatos de rotina e sacrifícios
Para proteger seus empregos e evitar possíveis represálias, os trabalhadores entrevistados pediram para não serem identificados. Por isso, nesta reportagem, seus nomes foram substituídos por nomes fictícios.
André, que abandonou o sonho de cursar faculdade, trabalha em uma grande rede de supermercados no Maranhão. Ele relata que começa sua jornada às 13h e retorna para casa entre 23h e 1h da madrugada, já que, diariamente, precisa fazer no mínimo duas horas extras. Segundo ele, isso ocorre porque o supermercado enfrenta falta de funcionários, sobrecarregando os que estão na equipe.
Ele afirma que não se sente confortável na escala 6×1. “Passo mais tempo no trabalho priorizando problemas da empresa e a minha vida vou deixando pra depois. Coisas que poderia fazer segunda tenho que adiar pra quinta ou sexta já que a escala não permite eu me planejar em nada fora do trabalho”. Além disso, a rotina se torna ainda mais cansativa por precisar trabalhar sábados, domingos e feriados.
Tiago, 27 anos, trabalha como vendedor em um shopping da cidade, ele explica que não tem um horário fixo. “Tenho que me desdobrar no horário da escala, tem dias que trabalho abertura,tem dias que no intermédio e outros no fechamento!”, descreve. Ele relata que o dano causado pela escala é psicológico e físico. “Além de cansaço demais você perde muita coisa,imagina você ter que faltar em todos os aniversários dos teus avós porque nunca tem tempo pra viajar ou até mesmo uma folga?”, questiona.
Enquanto isso, Jéssica, 27 anos, que trabalha no setor de vendas de uma empresa em São Luís, acredita que um dia é pouco para descansar. “Fica tão exaustivo que no domingo não quero sair de casa pra lugar nenhum. Não tenho tempo para fazer as coisas que eu gostaria de fazer no final de semana, e quando consigo fazer, na segunda estou exausta pois não descansei direito”.
Escala 6×1 e os danos à saúde mental dos trabalhadores
Em suas entrevistas, André, Tiago e Jéssica mencionaram estresse e ansiedade como algo atrelado às suas rotinas de trabalho. André relata sentir estresse constante e desmotivação, agravados pelo cansaço diário e pela sensação de que a empresa não valoriza seus funcionários. “Um dia de folga não dá pra descansar os seis dias trabalhados exaustivamente em um ambiente que prioriza apenas a empresa e os funcionários que se danem”.
Ele ressalta que a escala 6×1 faz ele perder tudo que diz respeito a ele. “Larguei a faculdade por não ter tempo suficiente pra estudar, é escolher trabalhar ou estudar. Perco momentos importantes com a família, e várias coisas que deixei de fazer por estar trabalhando”.
O que mais prejudica o vendedor Tiago é que é praticamente impossível conciliar a vida pessoal com a rotina exaustiva. “A gente só vai no automático, imagina que você está preso em um ciclo repetitivo e no seu dia de folga é o único tempo que você tem pra resolver tudo que não dá pra resolver nos outros dias?”, questiona. Ele comenta que nesse dia de folga é difícil lidar com casa, mercado, e resolver os problemas da vida adulta. “Então a folga você mal tem tempo pra descansar”.
Tiago sente falta de participar de mais momentos com a família. Devido à escala, ele já perdeu aniversários importantes e vem perdendo o crescimento dos sobrinhos. Além disso, a sobrecarga de trabalho tem limitado seu tempo para conhecer novas pessoas e ampliar seu círculo social.
Jéssica sofre de ansiedade e, devido ao trabalho exaustivo no setor de vendas, passou a enfrentar crises de ansiedade relacionadas ao ambiente laboral. Ela conta que não consegue fazer acompanhamento com um psiquiatra ou psicólogo, pois tem apenas um dia de folga, e nesse único dia os especialistas não têm disponibilidade para atendê-la.
A falta de descanso e a sobrecarga de tarefas contribuem para o agravamento de transtornos como a ansiedade, a depressão e o burnout, segundo o psicólogo e membro da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) do Conselho Regional de Psicologia do Maranhão (CRP-MA), Gilberto Costa.
Para ele, uma rotina de trabalho tão intensa traz repercussões significativas para a saúde emocional e psicológica dos trabalhadores. “No plano emocional, é comum o surgimento de irritabilidade, desmotivação e sensação de frustração, especialmente devido à insuficiência de tempo para o descanso e recuperação. Psicologicamente, o acúmulo de demandas e a falta de pausas adequadas podem favorecer o surgimento de transtornos como ansiedade e depressão, comprometendo a qualidade de vida e o desempenho profissional”, afirma.
Ele também explica que a curto prazo, a ausência de tempo para lazer e autocuidado intensifica o estresse e reduz a capacidade de enfrentamento dos desafios diários. Enquanto no longo prazo, a desconexão com a família e os amigos pode levar ao isolamento social e à redução da resiliência emocional.
Gilberto destaca os sinais de esgotamento mental e emocional em trabalhadores submetidos à escala 6×1. “Frequentemente apresentam sinais de esgotamento, como cansaço extremo, desinteresse pelas atividades laborais, dificuldade de concentração e alterações no sono. Esses sintomas, quando negligenciados, podem evoluir para quadros mais graves, como a síndrome de burnout, caracterizada pelo esgotamento físico e emocional associado ao trabalho.
Para ele, é essencial que as empresas e o sistema de saúde proporcionem acesso a tratamentos e terapias que atendam as necessidades dos trabalhadores. “Torna-se imprescindível a implementação de estratégias organizacionais que priorizem o bem-estar dos trabalhadores. Medidas como escalas rotativas, folgas compensatórias e programas de suporte emocional podem contribuir para mitigar os impactos negativos do regime 6×1”, sugere.
O impacto social da escala 6×1 sob a perspectiva sociológica
A escala 6×1 afeta não apenas o trabalhador, mas também as estruturas sociais mais amplas, afirma Abel Cassol, Doutor em Sociologia e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Segundo ele, a jornada de trabalho de seis dias consecutivos, com apenas um dia de descanso, não só compromete a saúde física e mental dos trabalhadores, como também reforça as desigualdades sociais e limita a integração social.
Cassol explica que a jornada 6×1 contribui para a manutenção de dois grandes problemas da mão de obra brasileira: a baixa qualificação profissional e os baixos salários. “A falta de formação qualificada é um reflexo de um histórico de negligência com a educação, o que limita as oportunidades de os trabalhadores se qualificarem e acessarem empregos melhor remunerados. Além disso, essa realidade precariza ainda mais o trabalho, especialmente com as reformas trabalhistas de 2017, que enfraqueceram direitos, como no caso do trabalho intermitente. Isso gera um ciclo de empobrecimento para grande parte da população, que não tem tempo nem recursos para melhorar sua qualificação, o que perpetua a desigualdade”.
De acordo com Cassol, o regime 6×1 afeta as relações familiares e sociais, pois o trabalhador está centrado apenas na sobrevivência, sem tempo para lazer ou para dedicar-se à família. “Pensemos em uma empregada doméstica, mãe de dois filhos com 2 e 6 anos, por exemplo, que sai de sua casa na periferia às 6h, desloca-se durante 2h, para chegar ao trabalho às 8h. Ao finalizar sua jornada (se essa for de 8 horas, conforme a CLT), ela chegará em casa às 20h, terá que cuidar dos filhos, alimentá-los, limpar a casa e realizar todas as demais tarefas domésticas. No outro dia, recomeçará tudo novamente até o seu descanso semanal”.
Cassol explica os efeitos que a escala 6×1 pode ter na integração social dos trabalhadores. De acordo com o exemplo citado por ele, se a empregada doméstica passa 8h no trabalho, ela necessita de mais 4h de deslocamento, ou seja, lhe restam 12h de convívio não relacionados diretamente à atividade laboral. “Pensando que ela terá de dormir, pelo menos, 6 horas, restam-lhe outras 6 horas para realizar atividades e “aproveitar” a vida em sociedade. Muitas vezes, os bairros periféricos não são contemplados com atividades culturais públicas, feiras livres, supermercados, não há ambientes públicos para convívio, o que transforma a nossa trabalhadora em uma pessoa alijada da vida coletiva. Ela não terá tempo (e nem renda) para deslocar-se ao centro ou a algum evento cultural em outro bairro, nem mesmo em seus dias de folga, pois provavelmente esse tempo será ocupado pelas tarefas domésticas, para cozinhar ou cuidar de alguma demanda dos filhos”, explica.
Para o professor, a escala 6×1 pode perpetuar desigualdades sociais, especialmente entre trabalhadores de diferentes setores e níveis socioeconômicos. Segundo ele, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com uma grande disparidade salarial entre ricos e pobres. “Segundo dados da Oxfam, um trabalhador que ganha um salário mínimo demoraria 19 anos para receber o que um super-rico ganha em um mês. A desigualdade é ainda mais grave entre a população negra, que, de acordo com uma pesquisa da FGV, levará mais de 200 anos para alcançar a equiparação salarial com os brancos. As mulheres negras, por sua vez, recebem apenas 48% do salário dos homens brancos”, destaca.
Ele afirma que a jornada 6×1 é predominante entre trabalhadores de baixa qualificação e mal remunerados. Isso amplifica as desigualdades sociais, raciais e de gênero, pois limita as oportunidades de crescimento pessoal e profissional, mantendo muitos trabalhadores presos a empregos precários nesse regime.
A PEC pelo fim da escala 6×1 segue aguardando os trâmites formais para avançar no Congresso. Enquanto isso, relatos de trabalhadores e análises de especialistas destacam os desafios impostos por esse modelo de trabalho, que afeta desde a saúde mental até as relações sociais e profissionais. As audiências públicas marcadas para os dias 3 e 4 de dezembro serão mais um passo no debate por condições de trabalho mais equilibradas no Brasil.
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