As emendas parlamentares se tornaram um dos principais pontos de atrito entre os poderes da República nos últimos anos, principalmente pela escala que ganhou em volume de recursos, pela falta de transparência no manejo do dinheiro público e pela reacomodação política que causou ao emparedar o governo, empoderando o Congresso de forma inédita. Nos últimos dias, a solução para o imbróglio teve um encaminhamento improvável, com a formatação de regras resultantes de uma articulação que teve a participação de integrantes não só do Legislativo e do Executivo, mas do Judiciário. A proposta foi aprovada na Câmara com uma margem confortável de votos (330 a 74) e já recebeu sinalização de que deverá ter tramitação célere também no Senado. O acordo só foi possível graças à atuação decisiva de um personagem que, em tese, estaria afastado da política: o ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino.
Tudo começou em agosto, quando o magistrado, que havia sido empossado no Supremo seis meses antes, deu um xeque-mate no Congresso. Com uma liminar, suspendeu a execução de praticamente todas as emendas parlamentares até que Executivo e Legislativo garantissem transparência e rastreabilidade na execução dos recursos. A medida atendia ao interesse do governo, cada vez mais fustigado pelo aumento de poder dos parlamentares por causa das emendas. A decisão de Dino, que antes era ministro de Lula, gerou uma crise com o Congresso. Os parlamentares enxergaram na interferência as digitais do presidente, que desde a campanha falava em retomar o Orçamento. Para os críticos, Dino atuou como uma espécie de “líder do governo” no STF.
A partir da decisão, o Congresso se mexeu para oferecer um texto que atendesse às exigências do magistrado — e foi aí que Dino fez o segundo movimento. Na Câmara, o texto foi construído pelo deputado Rubens Pereira Jr. (PT-MA), segundo ele, “com a participação de integrantes do Executivo e do Judiciário”. A proposta terá prioridade também na outra Casa, segundo o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), com previsão de ser aprovada ainda em novembro. Pereira Jr. é amigo pessoal de Dino e seu aliado desde 2006, quando ambos concorreram a cargos públicos pela primeira vez, representando o mesmo grupo político do Maranhão. Naquele ano, Dino foi eleito deputado federal e Pereira Jr., estadual. Depois, liderariam a oposição que levou Dino ao governo e pôs fim à hegemonia do clã Sarney.
A prioridade dada ao texto sobre emendas parlamentares do velho amigo e aliado de Dino ocorreu de forma surpreendente. Até então, a proposta que havia sido colocada na mesa do Congresso era a do senador Angelo Coronel (PSD-BA) — e que não contempla todos os pontos exigidos por Dino. O ministro recebeu Coronel no final de outubro e, por quase duas horas, discutiu, artigo a artigo, o projeto do parlamentar. O senador saiu da reunião com ao menos quatro sugestões ao texto e prometeu analisá-las. No dia seguinte, no entanto, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sinalizou que colocaria para votar o requerimento de urgência e o mérito do projeto de Pereira Jr. Diante disso, Coronel teve de admitir: seu projeto tem grande chance de não ser apreciado. Crítico do texto da Câmara por considerá-lo muito “pró-governo”, o senador disse, sorrindo, ao programa Os Três Poderes, de VEJA, que acredita ser “coincidência” ter sido dada prioridade à matéria cujo autor é um antigo aliado do ministro do Supremo.
Intrigas políticas à parte, a articulação de Dino resultou em um desfecho que, ao que parece, fará bem ao país. Desde 2015, o mecanismo das emendas vem ganhando proporção inédita a partir de decisões legislativas que tornaram obrigatória a sua execução, aumentaram exponencialmente seus valores e permitiram que fossem executadas sem a devida transparência. O valor, que era de 6,1 bilhões de reais em 2014, chegou a 49,2 bilhões de reais neste ano. O novo formato prevê limites para tal quantia, que fica atrelada a exigências do novo regime fiscal; cria regras para a execução (define as áreas prioritárias para destinação, como saúde, saneamento e educação, entre outros); e enquadra as chamadas “emendas Pix”, que precisarão informar o valor e o objeto do investimento, além de passarem a ser fiscalizadas pelo Tribunal de Contas da União.
O caso das emendas parlamentares não é a única incursão política de Dino no seu primeiro ano de toga. Na semana passada, ele participou como representante do STF de uma reunião no Palácio do Planalto convocada por Lula para discutir um plano de segurança com os governadores (leia a reportagem na pág. 28). Não seria nada demais se Dino não tivesse sido o ministro da Justiça e Segurança Pública até fevereiro e se diversas ações debatidas na reunião, bem como trechos da proposta elaborada pelo governo federal, não fossem ideias da época de sua gestão na Esplanada. No encontro, lembrou que um dos temas discutidos, a possibilidade de um acusado não ser liberado em audiências de custódia por crimes nos quais é reincidente, foi apresentado por ele em sua breve passagem pelo Senado.
A atuação de Dino fora do âmbito da Corte se insere em um movimento recente de integrantes do Supremo para tentar mediar casos complexos. O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, relator de cinco ações que questionam a decisão do STF de considerar inconstitucional o marco temporal para terras indígenas, criou um grupo de trabalho com segmentos da sociedade e, na abertura, disse que a solução passaria por uma “disposição política” de todos os envolvidos. Já Cristiano Zanin foi o mediador de uma solução para a desoneração fiscal de setores da economia, outro ponto de crise com o Congresso. Para o professor de direito constitucional da FGV Direito Rio, Álvaro Palma de Jorge, a participação do Judiciário na política pública não é novidade, nem no Brasil nem em outros países, mas a mediação de magistrados traz desafios, principalmente para não se confundir com um processo de negociação política, cujo fórum não é a Corte. “O papel do Supremo é a preservação dos direitos fundamentais e a aplicação da Constituição, enquanto que o Parlamento é o espaço constitucionalmente previsto para que a discussão, o debate negocial político, ocorra”, afirma.
Quando se leva em conta apenas a estratégia na qual o governo federal resolveu investir, a da aliança no STF para servir de contrapeso à sua dificuldade de articulação no Congresso, a escolha de Dino encaixou-se perfeitamente. Ainda no governo, ele se notabilizou pela maneira aguerrida e voluntariosa com que travou debates sobre questões polêmicas com parlamentares da direita bolsonarista, que fizeram dele um recordista de convites para ir ao Congresso, em sessões sempre conturbadas. Com a toga, tomou decisões polêmicas, sendo a mais recente delas a que determinou a retirada de circulação de livros jurídicos com conteúdo considerado homofóbico. Na Corte, herdou de Rosa Weber ações que vão exigir um olhar político experimentado, como a questão do aborto e a investigação que mira o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, seu ex-colega de Esplanada e conterrâneo, para a qual não se declarou impedido. Nada disso é novidade para quem se alterna, há mais de trinta anos, entre cargos no mundo jurídico e político — já foi juiz federal, desembargador, deputado, governador, senador e ministro, antes de chegar ao Supremo.
Inegavelmente, Dino foi vitorioso na questão da regulação das emendas. Ela é também uma grande vitória do governo e, de quebra, traz algum tipo de tranquilidade ao Congresso, facilita a fiscalização dos recursos públicos e diminui a probabilidade de questionamentos judiciais. Ao discursar após a sua indicação ao STF ser aprovada no Senado, Dino afirmou que o sentimento era de “saudade” e falou sobre a possibilidade de voltar a discursar na Casa. “Quem sabe, após a aposentadoria, em algum momento, se Deus me der vida e saúde, eu possa aqui estar”, afirmou. Como demonstram seus movimentos, ele vestiu a toga, mas não abandonou a alma de político.
Publicado em VEJA
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